A obra de arte que quero compartilhar com vocês é mais uma vez uma faixa musical. Dessa vez é a belíssima canção Flight da trilha sonora do jogo Xenogears para PSX.
Essa é uma obra para mim porque me faz lembrar na mesma hora em que a aprecio que poucos compositores conseguem fazer com que me sinta real e profundamente emocionado. Sou comovido de verdade por essa música que, não raro, até mesmo me leva às lágrimas.
Lágrimas estas bastante curiosas se pararmos para pensar. Afinal de contas, a música não é tão somente triste. E sequer penso aqui na cena (igualmente sensacional) que acompanha sua execução durante o jogo. Yasunori Mitsuda converteu-se em meu compositor de trilhas para videogame favorito por ter essa capacidade de evocar emoções e sentimentos facilmente sem qualquer dependência de outras mídias.
Flight é extremamente paradoxal do começo ao final. Não simplesmente em sua estrutura musical propriamente dita, mas pela carga de coisas que ela nos comunica compasso a compasso. Ouvindo-a como ouvinte e não como músico, é muito fácil sentir nela certa leveza, mas também um peso característico; uma tristeza profunda, mas uma alegria incomensurável; uma angústia que nos aperta o peito, e pés ligeiros a caminhar sobre as nuvens...
Esse paradoxo todo que a música passa me dá a impressão de ser uma tentativa de exprimir as contradições inerentes à própria liberdade humana. Ela é paradoxal por definição já que, como diz Sartre, "estamos condenados a ser livres", ou, como diz Dostoiévski, "se Deus não existisse, tudo seria permitido". Ateus ou teístas, nosso livre arbítrio consiste nessa curiosa mistura entre as determinações (ou obediência) e a ausência de governo externo (e suprema responsabilidade do indivíduo).
O próprio título da música que remete claramente ao vôo já denuncia essa proximidade da canção com a liberdade. Certa vez conversando com uma amiga sobre super-poderes interessantes para se ter, ela disse que voar seria algo bacana, mas que traria mais problema do que satisfação. Enquanto concordava com ela, pensei e cheguei à conclusão de que, de fato, o desejo pela possibilidade de voar, tema de tantas invenções humanas nas artes mais variadas (belas artes ou não), passa justamente pelo cerne de nosso livre arbítrio.
E tal como voar nos coloca diante de um abismo imenso abaixo de nossos pés, a liberdade é simplesmente essa vertigem diante dos abismos de nossa própria liberdade.
Um usuário do YouTube neste link que passei mais acima, chamado Brian Hulsman, descreve sua experiência com essa música como sendo um "levantar vôo": os quarenta primeiros segundos mais duros e difíceis seguidos por turbulências e negras nuvens ao derredor, mas alcançando o topo do céu e enxergando apenas "a luz do sol e o azul a seu redor".
Eu não poderia descrever essa imagem melhor por conta própria e, por isso, usarei a imagem de um filósofo chamado Kierkegaard para descrever a liberdade. Para ele, a liberdade é a vertigem que experimentamos ao olharmos sob nossos pés o abismo de nossas possibilidades e percebermos que nada, a não ser nós mesmos, nos impede de nos jogarmos de lá de cima. Escolhendo ou não escolhendo pular, nós sempre seremos liberdade.
Com essa imagem em mente, posso dizer que a vertigem perpassa esses quarenta segundos iniciais da música e, o que vem a seguir é o nosso planar caindo desse abismo, com o ar atingindo-nos o rosto e todo o corpo enquanto esboçamos um sorriso nervoso. Nós escolhemos e agora experimentamos as consequências de nossa escolha, de nossa liberdade. Demos um salto e todo salto do livre-arbítrio que somos é vôo. Caindo ou erguendo-nos é vôo. E esse espírito permanece a partir desse instante da música até o seu final.
Em torno dos 2:23, há uma mudança na música que pode ser vista como uma nova visada: talvez o sol se mostra mais belo e o azul do céu mais profundo, ou o chão se mostra mais próximo de nós, ou ainda uma leve turbulência atravessando nuvens a nos inquietar novamente o espírito.
Essa música me toca profundamente porque ela tenta, em quase cinco minutos, descrever o que acontece conosco em um instante. E um instante nunca é algo de temporal, mas eterno: em um momento somos algo, em outro, após o salto, somos outra coisa. Isso é liberdade.
E não é à toa que essa música toca em um momento crucial de escolha do jogo. Maria tem que escolher. Ela pode ficar sentada vendo seus amigos se defenderem ou pode ousar, ficar de pé, fazer a diferença e lutar. Ela correndo rumo ao hangar dos gears para pilotar seu fiel Seibzehn é a melhor cena do jogo todo para mim. Ela escolheu seu destino, ela optou por fazer alguma coisa. Se não tivesse feito nada, ainda assim teria escolhido, mas poderia ela conviver com a responsabilidade de não ter feito coisa alguma?
E falar em liberdade em um jogo como Xenogears é curioso. Afinal, ele é recheado de destinos trágicos. E a tragédia é sempre pura determinação: a liberdade não tem qualquer espaço nela. Contudo, falarei mais a respeito disso em uma postagem em meu outro site porque isso realmente nos faria viajar mais do que essa música nos permite nos levando não apenas para os reinos da literatura, mas também da arte em geral.
Por isso, fico por aqui agora! Até o próximo post!
É Xenogears... não precisa dizer mais nada... adoro esse game...
ResponderExcluirÉ um jogão, sem dúvida! E essa trilha sonora do Yasunori Mitsuda é soberba!
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